Bailar a vida: um percurso sinuoso e encantador


 Por Flávia Gouveia

Desde que me entendo por gente, sempre gostei de música e de dançar. Minha mãe incentivava, ouvindo músicas em casa e oferecendo aulas de balé e jazz para mim e para minha irmã sempre que possível. Além das apresentações da escola de dança, eu sempre aproveitava as oportunidades de participar de apresentações em eventos do colégio onde estudava, ao lado de colegas.

Mas o modelo que eu admirava e sonhava tornar-me, inspirada pela mídia e pelos comentários ao redor, estava bem distante da realidade do meu corpo. Apesar do metabolismo supostamente favorável por causa da pouca idade, eu era bem gordinha. “Obesa”, sentenciou uma endocrinologista certa vez, quando eu ainda era menina.

Embora isso não me impedisse de subir ao palco, eu tentava esconder com um sorriso minha circunferência fora de padrão que rendia muitos comentários crueis dos colegas (na época isso nem tinha nome, hoje chamam de bullying). A alegria de dançar para mim compensava a vergonha e lá ia eu, com a fantasia apertando a barriga!

Desajeitadamente, a vida seguiu com a separação dos meus pais e a impossibilidade financeira para os “supérfluos”, o que me distanciou da dança em diversos momentos. Quando minha mãe mudou de cidade, fiquei interessada em capoeira, que cabia no orçamento e me ajudava a aliviar a pressão do vestibular. Na adolescência, comecei a fazer dietas (da sopa, da fome, daquele livro da moda, do remédio etc) e conseguia emagrecer, com momentos de efeito sanfona.

Na faculdade, já em outra cidade, comecei a namorar, o que me motivou a fazer mudanças alimentares e a praticar exercícios. Emagreci bem e frequentava regularmente uma academia de ginástica e musculação. Eu não fazia mais aulas de dança para apresentações havia um bom tempo, embora sempre dançasse nas festas da faculdade, fosse às vezes ao forró com os amigos e praticasse step e aulas dançantes na academia.

Nesse período, eu tomava ônibus para ir à faculdade e foi no ônibus que conheci um rapaz que fazia faculdade de dança e tinha se especializado em dança flamenca. Minha irmã, que morava comigo e estudava na mesma universidade, queria iniciar uma atividade física que não fosse academia. Então me lembrei do amigo do ônibus e recomendei a ela o flamenco. Peguei com esse amigo o contato de uma professora de flamenco amiga dele e passei para minha irmã, que logo iniciou as aulas e adorou!

Minha irmã chegava em casa das aulas muito empolgada, contando como era tudo interessante e desafiador, e um dia me sugeriu ir a uma aula com ela. Depois de algumas semanas, finalmente fui com minha irmã a uma aula de flamenco. Fiquei encantada! Tive vontade de iniciar a prática, mas ainda precisava comprar calçados adequados, pois o som do sapateado depende do solado do sapato, que tem muitas pequenas tachinhas na ponteira e no salto.

É possível iniciar o flamenco com sapatos de dança de salão adaptados, mas sapatos elaborados especialmente para flamenco são artesanais, produzem um som bem mais limpo e são mais resistentes. São bem mais caros também. É aqui que vem a parte Cinderela da minha história!

(Em 2010; com coreografia de Mariana Abreu)

Ao conversar com meu amigo do ônibus sobre minha vontade de iniciar o flamenco, ele me perguntou: “Quanto você calça?”. Um pouco sem jeito com meu biotipo fora do padrão, respondi: “39”. Então ele me contou que tinha um sapato de flamenco feminino número 39, um pé só, que ele tinha ganhado de um sapateiro especializado para servir de mostruário a alunas interessadas. A numeração do mostruário foi escolhida justamente por ter pouca procura. Para minha surpresa, ele me ofereceu o sapato como presente!

Fiquei super feliz, mas eu ainda precisava conseguir o outro pé de sapato. Peguei o contato do sapateiro, escrevi-lhe dizendo ter perdido um sapato do par e lhe perguntei se ele poderia fazer apenas um pé para mim, a um preço reduzido. Deu certo! Consegui iniciar o flamenco com um par de sapatos de boa qualidade e praticamente pela metade do preço de mercado.


Comecei a fazer aulas de flamenco uma vez por semana, mantendo a academia de ginástica e musculação. Rapidamente migrei para duas vezes por semana e aos poucos desliguei-me da musculação. Com poucos meses de aulas, participei de uma audição e fui selecionada para integrar um grupo de estudos e apresentações de flamenco, chamado Zaranda. Eram quatro ou cinco jurados na audição, não me lembro ao certo, sendo um deles o meu querido amigo do ônibus.

Os anos se passaram e nesse período tive a oportunidade de me apresentar em diversos eventos, lugares e cidades, inclusive ao lado do amigo do ônibus, que a certa altura passou a ser o amigo do flamenco e da vida, meu padrinho na dança flamenca. Aprendi a tocar castanholas e a bailar com outros acessórios, como o leque e o mantón. Fiz cursos com professores de escolas do Brasil e da Espanha. O flamenco me conquistou definitivamente. Quando o Zaranda encerrou suas atividades, formei com uma amiga um grupo de flamenco para apresentações, o Flama Arte Flamenca. Animadas com as atividades do grupo, criamos um blog no qual escrevíamos sobre nossas experiências e aprendizados.  

(Em 2012; com coreografia de Tatiana Hass)

Entretanto, minha história com o flamenco teve uma grande ruptura em meados de 2014. Desliguei-me do flamenco quando saí do Brasil para um estágio de doutorado de um ano. Passei o ano seguinte focada na conclusão da tese e, logo após a defesa, por falta de atividade física, tive um problema no joelho esquerdo que me afastou por mais dois anos da dança. Sem qualquer causa aparente, comecei a sentir muita dor no joelho esquerdo e chegou um momento em que não era mais possível andar, muito menos subir e descer escadas. A perna esquerda foi perdendo massa muscular de forma rápida (parecia um braço, de tão fina). Passei por diversos médicos (que nem sempre concordavam entre si), iniciei fisioterapia, mas não melhorava. Meu diagnóstico era de condropatia patelar, um desgaste na cartilagem da patela, agravada por uma fissura profunda. Troquei de fisioterapeuta, iniciei acupuntura e comecei a notar algum progresso.

Os anos seguintes foram de muita dor, fisioterapia, acupuntura e o receio de não conseguir voltar a andar, de não ter de novo uma vida normal. Percebi que o caminho para minha recuperação era conquistar uma musculatura forte e um organismo saudável. Aquela condição me motivou a pesquisar muito sobre nutrição e exercícios físicos, e esse conhecimento foi fundamental para minha recuperação. Aos poucos, ganhei força e massa muscular, as dores foram diminuindo, voltei a andar sem mancar e, finalmente, a subir e descer escadas! A cada vitória, crescia a esperança de dançar novamente.


Há três meses, e com liberação médica, retomei as aulas de flamenco de forma tímida e com medo de voltar a sentir dor. Comecei também a frequentar aulas de dança de salão, no intuito de aprender novos estilos. Estou adorando! Ainda tenho limitações para agachar e sei que a condropatia é irreversível, mas o fortalecimento muscular é o que me mantém sem dor e em condições de dançar. Com o tempo, senti que as aulas estavam me fazendo muito bem, que a agilidade do corpo estava voltando, e que conseguiria participar da apresentação de flamenco de final de ano. Contei com o apoio da minha professora e dos colegas de turma, a quem sou muito grata.


( Em 2014, bailando Fandangos.
Coreografia de Tatiana Hass)


Para minha tristeza, há pouco mais de um mês, perdi meu padrinho flamenco, meu grande incentivador, a pessoa a quem devo o início da minha trajetória como “bailaora”. Com uma mistura de sentimentos no coração, retornei oficialmente aos palcos flamencos no dia 9 de novembro de 2018, bailando tangos, farruca, bambera e sevilhanas! Foi maravilhoso!
 


(O retorno aos palcos, em 2018. 
Bailando Bambera, 
com coreografia de Tatiana Hass)



Dedico este relato a meu querido amigo e padrinho Rogério Caserta, com todo meu carinho e gratidão.

 
( Imagens: Arquivo Pessoal)

Comentários

  1. Lindo, Flávia! Adorei, pois havia detalhe que eu desconhecia. Você sempre mereceu alcançar este e outro de seus objetivos! Bjus.Sonia.

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    1. Obrigada, Sô querida! Você e Jujuca, minhas fãs de longa data! Beijos!

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  2. Adorei sua estória Flávia!!!! Tantas coisas surpreendentes... você gordinha, não creio :-) , a cinderela, etc, etc... Quando você esteve fora do Brasil eu lembro ter pensado que estava lá por causa do flamenco, devido alguma publicação sua, embora na época eu nem soubesse que você dançava. Depois soube que era seu doutorado, e achei que eu tinha misturado as bolas. :-) Bem, nem tanto, sua relação com a dança é bem forte. Parabéns pelo relato, continue dançando pela vida! Beijo!

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    1. Obrigada, PV! Fico contente que você tenha gostado! Minha infância gordinha e minha relação com a nutrição rendem uma história à parte. A paixão pela dança é bem antiga e agora valorizo ainda mais poder dançar. Sinto que é uma forma de voar com trilha sonora! Rs! Beijo!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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